O Mito de Eva e a Estética da Submissão

O Mito de Eva e a Estética da Submissão

Foram mais de dois mil anos construindo a imagem da mulher submissa.

Somos precursoras do pecado original e trazemos em nós a incessante busca pela redenção da humanidade.

Nosso corpo sedutor, nossa língua ardilosa, nossa intimidade com o mal absoluto ao qual nos entregamos ao dar ouvidos ao arquétipo da serpente nos condena à priori.

Fomos nós mulheres que arrancamos a humanidade do paraíso e a condenamos ao eterno ciclo de vida e morte, prazer e dor. Um fardo pesado demais que nos condena a posições de culpa e arrependimento, dois sentimentos que servem muito bem ao propósito de uma submissão voluntária.

Um pêndulo perigoso impulsionado pela narrativa de um dia termos sido deusas e agora estarmos condenadas a desconfortável posição de filhas e servas do Pai Criador o que favorece e sustenta todo e qualquer impropério que se queira impor ao nosso ser, ao nosso corpo e a nossas posições sociais ou familiares.

Enquanto essa narrativa se sustenta no mundo real, no mundo da Barbie, a estética cor de rosa nos resgata. Lá toda Barbie é capaz e está livre de seu fardo, pois o pecado não foi imaginado, a dinâmica desenvolvida a partir das potencialidades criadoras da mulher (da mulher que brinca e da mulher que representa) não obedece a lógica da submissão e por isso ela faz o que quer, pode o que desejar e não se submete a qualquer estereótipo que a ela seja imposto.

Isto porque ela é criadora de si.

Criando a si mesma não há lugar para autoflagelação.

A crise surge quando os mundos se tocam. O conflito se instaura quando a menina descobre que existe um mundo supostamente real que a coloca de pés no chão em contato com a imposição da culpa e do medo. Medo de perder a inocência que se esvai com a pergunta que a tudo cala: “Vocês já pensaram na morte?”… Culpa por ser a que ousa fazer a pergunta.

Enquanto culpa e medo invadem a estética cor de rosa, é na compreensão da ideia de liberdade que existe a possibilidade de uma redenção apaziguadora entre os mundos. Redenção essa que só pode acontecer dentro de cada Barbie e a partir de cada Barbie compositora de sua própria vida.

E é exatamente sobre isso que não estamos ouvindo as críticas falarem.

Existe um grande coletivo pronto para alertar sobre os perigos ocultos na história apresentada pelo filme, homossexualidade, sexualidade, alienação, consumismo, filme para adultos não levem suas crianças (principalmente a criança interior, vai que ela desperta).

Existe também outro coletivo que não sai da análise rasa, que até que capta o ridículo do patriarcado explícito na imagem de um Ken imaturo e inseguro, capta a releitura feita a partir da remodelação linguística do que ser Barbie representa enquanto crítica que confronta o modelo da mulher objeto e até resvala na ideia de pluralidade das possibilidades de escolha a partir de um processo de uma apropriação de si.

Mas ainda vejo que não é só sobre isso, escapa de tudo o que tenho lido sobre o filme um paralelo representativo entre a mulher submissa e a Barbie estereotipada do filme e sua jornada em busca da libertação dos fardos que lhe são impostos na medida em que o “deve ser” sempre lhe precede o existir em seu modo próprio de ser, o absurdo de sua pergunta lhe arranca de seu “mundo ideal” e a condena ao lugar de esquisita e desajustada.

A minha ideia e percepção sobre a estética da submissão do mundo real, passa por compreender que se o Mito de Eva fosse interpretado à luz de um contexto em que culpa fosse substituída por liberdade e arrependimento por responsabilidade, talvez houvesse a possibilidade de um exercício mais cor de rosa das nossas potencialidades.

Transformar nosso contexto estreito em amplos horizontes talvez seja uma interpretação possível para a estética cor de rosa apresentada pelo mundo de Barbie.

Karina Zapater

Psicóloga

CRP 06/184974

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